Assim, partindo da ideia de Bakhtin que todo texto traz em si uma heterogeneidade constitutiva, uma relação com o exterior que perpassa sua estrutura e está presente em qualquer discurso, pude verificar algumas relações entre a música “Da lama ao caos”, de Science, e o romance Homens e caranguejos.
Em Linguagem e ideologia, Fiorin afirma: “O homem aprende como ver o mundo pelos discursos que assimila e, na maior parte das vezes, reproduz esse discurso em sua fala” (FIORIN, 2007: 35). Essa ideia reflete, na verdade, a de que o outro sempre permeia o discurso, numa relação dialógica, e cada fala é resultado do confronto inevitável entre o eu e o outro, aqui entendido como o que está prescrito na relação (que não é necessariamente o outro com quem estou falando).
Assim, é inerente ao discurso a heterogeneidade discursiva: “O outro está presente sempre e em todo lugar” (AUTHIER-REVEZ apud DISCINI, 2004: 11). Ao falar sobre essa heterogeneidade, Bakhtin utiliza o termo “dialogismo”, conceito de diálogo que existe entre o ser humano e a cultura.
Ao falar sobre dialogismo, é importante distinguir o que é intertextualidade e interdiscursividade. Apesar dos dois fenômenos estarem relacionados à presença de diferentes vozes num mesmo discurso, isso se dá de forma diferente.
A interdiscursividade é definida por Fiorin como: “o processo em que se incorporam percursos temáticos e/ou figurativos, temas e/ou figuras de um discurso em outro” (FIORIN, 2003: 32).
Já a intertextualidade é definida pelo mesmo autor como: “o processo de incorporação de um texto em outro, seja para produzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo” (FIORIN, 2003: 30) e pode se dar interna ou externamente. A interna ou implícita refere-se à heterogeneidade constitutiva do discurso e está relacionada à interdiscursividade. A externa ou explícita diz respeito à incorporação de um texto a outro e pode se dar de três maneiras: citação, alusão e estilização.
Passando das teorias, que quase ninguém entende, para a prática, peguei “Da lama ao caos”, de Chico Science, música que dá nome ao primeiro álbum do grupo CSNZ, e nela pude observar referências à cena urbana do Recife (“fui na feira roubar tomate e cebola”), às canções populares locais, aos caranguejos, à questão da organização social (“Que eu me organizando posso desorganizar/Que eu desorganizando posso me organizar”) e ao autor de Homens e caranguejos, Josué de Castro (“Oh, Josué, eu nunca vi tamanha desgraça”).
A interdiscursividade (ou intertextualidade
implícita) refere-se às relações dialógicas presentes no texto e, nesse
sentido, ao analisarmos a canção percebemos que isso se dá por meio da
citação, já que repete ideias, percursos temáticos e figurativos, por
exemplo:
O sol queimou, queimou a lama do rio
Eu vi um chié andando devagar
Vi um aratu pra lá e pra cá
Vi um caranguejo andando pro Sul
Saiu do mangue, virou gabiru
No trecho acima, é possível identificar a metáfora do homem-caranguejo, que vive no mangue desde pequeno (chié) e seu desejo de migrar para o Sul (“Vi um caranguejo andando pro Sul”), onde será identificado como “gabiru”. A mesma ideia de homem-caranguejo, criado pra lá e pra cá no mangue e que, finalmente, vai para o Sul em busca de algo melhor é apresentada ao longo da obra Homens e caranguejos. Isso pode ser exemplificado por um trecho do Capítulo II – De como aparecem aos olhos de João Paulo os cavaleiros da miséria com suas estranhas armaduras de barro:
(…) O que agora sente é um cheiro frio de lama podre, de terra morta em decomposição. Cheiro de carniça da terra que deve excitar o olfato e o apetite dos urubus e dos cachorros famintos, mas que deixa João Paulo entorpecido, quase nauseado. Reagindo à depressão, se acende na alma infantil de João Paulo um grande desejo de libertação. De evasão daquela paisagem humana parada e monótona. Desejo imperioso de sair de tudo. De sair de dentro de si mesmo. De sair do círculo fechado da família. Do ciclo do caranguejo. Da cidade do Recife. Um desejo desesperado de arrebentar com todas as amarras que o ligam à lama pegajosa do vale do Capibaribe e às folhas viscosas do mangue. (CASTRO, 2007: 41 e 42)
O artista recupera termos locais para
designar esses homens-caranguejos presentes na obra de Castro, como o
“chié”, caranguejo pequeno, mas que no contexto popular, toma novo
significado, o de menino pobre, de rua; “aratu”, uma espécie de
caranguejo com grande habilidade para subir em árvores do mangue; e
“gabiru”, um tipo de rato, mas que, na canção, é recontextualizado
adquirindo o significado de mendigo. São todas figuras, que assim como
João Paulo está pensando, vão deixando o mangue.
(…) Foi assim que eu vi e senti formigar dentro de mim a terrível descoberta da fome. Da fome de uma população inteira escravizada à angústia de encontrar o que comer. Vi os caranguejos espumando de fome à beira da água, à espera que a correnteza lhes trouxesse um pouco de comida, um peixe morto, uma casca de fruta, um pedaço de bosta que eles arrastariam para o seco matando a sua fome. E vi, também os homens sentados na balaustrada do velho cais a murmurarem monossílabos, com um talo de capim enfiado na boca, chupando o suco verde do capim e deixando escorrer pelo canto da boca uma saliva esverdeada que me parecia ter a mesma origem da espuma dos caranguejos: era a baba da fome. Pouco a pouco, por sua obsessiva presença, este vago desenho da fome foi ganhando relevo, foi tomando forma e sentido em meu espírito. Fui compreendendo que toda a vida dessa gente girava em sempre em torno de uma só obsessão – a angústia da fome. Sua própria linguagem era uma linguagem que quase não fazia alusão a outra coisa. A sua gíria era sempre carregada de palavras evocando comidas. As comidas que desejavam com desenfreado apetite. A propósito de tudo se dizia: é uma sopa, é uma canja, é um tomate, é uma ova, é um abacaxi, é uma batata, é pão-pão, é queijo-queijo. Era como se esta gíria fosse uma espécie de compensação mental de um povo sempre faminto. De um povo inteiro de barriga vazia, mas com a cabeça cheia de comidas imaginárias. (CASTRO, 2007: 17)
É possível ainda identificar uma relação
interdiscursiva por meio da alusão. No verso “Oh, Josué, eu nunca vi
tamanha desgraça/Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”,
incorporam-se temas como a ameaça dos urubus e dos cachorros famintos,
além da figura do “urubu” (“Cheiro de carniça da terra que deve excitar
o olfato e o apetite dos urubus e dos cachorros famintos”).
A mesma relação está presente no Capítulo X –
De como as águas cresceram por sobre o ventre da terra, em que o autor
utiliza a imagem do “urubu” pra falar sobre a questão da fome,
mostrando que o urubu está sempre à espreita para o que vier, numa luta
constante por sobrevivência, tanto por parte dos homens, quanto dos
caranguejos, como dos urubus:
Desce também muito bicho morto: carneiro, cachorro e cabra. E até vacas com o bucho enorme, distendido pelos gases, as cabeças submersas, parecendo mais baleias do que mesmo vacas. Os urubus montados nas carcaças, viajando água abaixo agarrados na sua carniça. Passa, de vez em quando, uma galinha morta, que os tripulantes das barcaças e das jangadas procuram agarrar para se garantirem de alguma comida nos dias difíceis que os esperam. (CASTRO, 2007: 147 e 148)
Recupera-se também neste trecho da canção
toda a obra de Josué de Castro – lida por Science e que serviu de base
para a formação do movimento manguebeat – e todas as suas idéias, como
se o geógrafo fosse uma espécie de salvação para a situação, por meio do
chamamento “Oh, Josué”.
A letra inteira remete à miséria do mangue e à necessidade de se
alterar essa situação, seja pela organização ou pela desorganização
(“Que eu me organizando posso desorganizar/Que eu desorganizando posso
me organizar”).A canção de Chico Science ainda retoma a fala do Velho Faceta conhecido por seu pastoril profano, que tem como tema principal o sexo, num folguedo repleto de malícia e sentidos distorcidos. Assim, por meio da citação, repete a idéia de malícia presente no pastoril em trecho de duplo sentido e caráter erótico: “Ia passando uma véia pegou a minha cenoura/Aí, minha véia, deixa a cenoura aqui”. Isso se dá também pela alusão, ao incorporar ao texto termos como “balaio”, “véia” e “cenoura”.
Mas os folguedos típicos do Recife não estão presentes somente pela inclusão de palavras coloquiais, populares, como “bucho”, “véia”, “balaio”, mas a própria batida da música, após os cinco primeiros versos – estes fortemente marcados pelas guitarras distorcidas, traz à tona o ritmo dos maracatus, com suas alfaias, atabaques, bombos, ainda que acompanhados por um vocal mais ligado ao rap e por algumas batidas de funk, numa releitura pós-modernista.
No que diz respeito à intertextualidade
explícita, o que ocorre no trabalho de Science é uma absorção do texto
de Josué de Castro por citação, confirmando o sentido do texto do
médico. Por exemplo, ao escrever: “Que eu me organizando posso
desorganizar/Que eu desorganizando posso me organizar/ Da lama ao
caos/Do caos à lama/Um homem roubado nunca se engana”, Science retoma o
fato de esses homens-caranguejos, como no romance, irem da lama ao
caos e do caos à lama, no que Josué de Castro chama de “ciclo do
caranguejo”, ou ainda “ciclo da fome”:
São duzentos mil indivíduos, duzentos mil cidadãos feitos de carne de caranguejos. O que o organismo rejeita volta como detrito para a lama do mangue para virar caranguejo outra vez.Nesta aparente placidez do charco desenrola-se, trágico e silencioso, o ciclo do caranguejo. O ciclo da fome devorando os homens e os caranguejos, todos atolados na lama. (CASTRO, 2007: 27)
(…) É a população dos mocambos dando sinais de vida, preparando-se para viver um novo ciclo do caranguejo. (CASTRO, 2007: 27)
Mas, ainda assim, diante da suposta ajuda do governo, como no caso da
tempestade que ocorre no romance, “um homem roubado nunca se engana” e,
por isso, não aceita ajuda:
É que, com a descida das águas, a vida dos habitantes dos mangues longe de melhorar, caminhava para pior. A fome aumentava ainda mais. Passada a fase aguda da catástrofe, os poderes público logo suspendiam a ajuda que davam aos flagelados. (CASTRO, 2007: 157)
A fome foi-se alastrando impiedosamente, associando-se às doenças que proliferaram com a cheia de maneira assustadora. (CASTRO, 2007: 158)É que o habitante do mangue, principalmente o que veio de cima, desceu do sertão na seca, acossado pela fome e pela sede, é em regra um cabra de gênio difícil. (CASTRO, 2007: 160)
Não forma feitos para lamber o cu de ninguém. Não se iam alistar para votar num governo que os matava de fome. Governo aliado dos grandes proprietários que os havia expulsado das suas terras sem piedade. (CASTRO, 2007: 160)
Preferiam continuar morrendo de fome a vender a sua dignidade por um dez-mil-réis-de-mel-coado. (CASTRO, 2007: 160)
Entretanto, poderíamos afirmar que as vozes presentes nos dois textos
dialogam por meio de um ponto de vista diverso, numa relação polêmica,
uma vez que, na canção, o eu-lírico afirma poder sair do local (“Posso
sair daqui pra me organizar”) – um destes homens-caranguejos chega ,
inclusive, a ir para o Sul -, porém, no romance de Josué de Castro,
ocorre que, ainda que o menino João Paulo tente encontrar uma forma de
escapar de seu destino:
(…) João Paulo sentiu uma confusão na cabeça e um formigamento no corpo. Disparou na carreira. Corria em ziguezague como correm os caranguejos, procurando descobrir de onde vinha mesmo o barulho da tempestade. (CASTRO, 2007: 179)
ele segue sua vida, seu ciclo e vira caranguejo, alimentando, com seu
corpo em decomposição, o ciclo dos caranguejos, que irá alimentar
outros homens-caranguejos:
(…) Dentre eles, enterrado nos mangues, deve estar, em qualquer parte, o corpo de João Paulo que, com a sua carne em decomposição, irá alimentar a lama que alimenta o ciclo do caranguejo. (CASTRO, 2007: 188)
*Texto escrito em 2009.