terça-feira, 24 de abril de 2012

Não vou me adaptar ou em que espelho ficou perdida a minha face

A velhice e o envelhecimento é um tema muito frequente em todos os campos da arte e em diversos períodos da História. Prestando um pouco de atenção no Arnaldo Antunes, lembrando um pouco das aulas de literatura do colégio e, até mesmo, lembrando um pouco de algumas obras de Klimt, percebi que dava pra fazer várias relações. Como eu nunca estou querendo pensar muito (rs…), me recolhi a minha insignificância e resolvi pensar um pouco (ou mesmo viajar) só sobre literatura e música. Como tudo o que eu tava pensando precisava de alguma “coisa” teórica pra convencer quem lê (inclusive pra me convencer), lá fui eu ao filósofo da linguagem (ele não era lingüista, era um filósofo da linguagem!) Mikhail Bakhtin.

Uma das vertentes de suas reflexões é o dialogismo. Segundo ele, o ato da fala é sempre orientado para uma resposta, que terá sempre uma apreciação valorativa – em outras palavras, toda vez que eu falo, há uma intenção. Assim, todo discurso seria perpassado por uma formação ideológica e, diante disso, o conceito de diálogo estabelecido por ele poderia ser definido como algo que existe entre os seres humanos e a cultura.

Esse diálogo, constitutivo de qualquer fala, se dá pelo conhecimento comum da situação existente e de duas maneiras diferentes – contratual e polêmica.

Teoria explicada, pego “Retrato”, de Cecília Meireles e “Não vou me adaptar”, de Arnaldo Antunes, e tento fazer alguma coisa e sai isso.

Pra quem não sabe, a poetisa da segunda geração modernista Cecília Meireles inicia-se na literatura participando da “corrente espiritualista”, de inspiração neo-simbolista. Em determinado período, afasta-se deste grupo, porém sem abandonar as características introspectivas, de interiorização, refletindo uma atmosfera de sonho e, ao mesmo tempo, solidão.

“Retrato” traz um dos temas fundamentais da poética da autora, sua consciência de transitoriedade. O tempo é o tema principal de sua obra, constatando sempre que ele é fugaz, fugidio, e que a vida passa e a morte chega rápido.
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Ao longo do texto, o eu-lírico descreve seu estado físico atual por meio da sinestesia, caracterizando-se como uma pessoa que tem o rosto calmo, triste, magro, os olhos vazios, o lábio amargo, as mãos sem força, paradas, frias e mortas.

Já pelo título, é possível perceber que esse “eu” está diante de seu retrato, comparando sua aparência atual com a de uma foto antiga: “Eu não tinha este rosto de hoje,” e “Eu não tinha estas mãos sem força,”.

Diante de sua fotografia, as mudanças físicas parecem se estender a seus sentimentos, unindo aos aspectos físicos adjetivações que parecem carregar em si desconforto em relação ao envelhecimento: “…este rosto de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro”, “olhos vazios”, “lábio amargo”.

Além do rosto, partes do corpo tão necessárias à movimentação, à ação, ao fazer, como as mãos, são citadas, mostrando que, com a passagem do tempo, não são apenas aspectos ligados à aparência, às feições, que são transformados, como também há certa debilidade que, talvez, dificulte sua ação: “…estas mãos sem forças,/ tão paradas e frias e mortas”.

Na última estrofe, o eu-lírico confessa não ter percebido a mudança – característico de sua poesia, a constatação de que a vida passa rápido, é fugaz e, quando menos se espera, ela já passou: “Eu não dei por esta mudança,/ tão simples, tão certa, tão fácil:”.

Contudo, esse “eu” não se revolta contra sua condição, contra o envelhecimento, apenas constata sua aparência atual, sem se reconhecer nela, já que, ao final, questiona: “Em que espelho ficou perdida/a minha face?”.

Composta em 1985 por Arnaldo Antunes, a canção “Não vou me adaptar” também tem como tema o envelhecimento, a passagem do tempo.

Arnaldo Antunes, compositor contemporâneo nascido na década de 1960 em São Paulo, é um artista que circula por diversas vertentes, tendo participado de intervenções e outras produções poéticas, além de ter integrado também a banda Titãs, como principal vocalista e compositor.




Aqui, o eu-lírico elenca algumas alterações físicas que mostram que ele cresceu, envelheceu: “Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia”, “Eu não tenho mais a cara que eu tinha”, “Mas é que quando eu me toquei,achei tão estranho,/ A minha barba estava desse tamanho”.

Paralelamente às alterações físicas, observa transformações de sentimentos, decorrentes, muito provavelmente, desta passagem do tempo: “Eu não encho mais a casa de alegria.”, “E quem eu queria bem me esquecia.”

Além da constatação das mudanças sofridas com o passar dos anos, percebe que isso aconteceu sem que ele se desse conta: “Os anos se passaram enquanto eu dormia,”, “Mas é que quando eu me toquei, achei tão estranho”.

Diante disso, não se reconhece no espelho (“No espelho essa cara não é minha”), questiona-se a respeito de algo que tenha feito no refrão por meio de versos como “Será que eu falei o que ninguém ouvia?/Será que eu escutei o que ninguém dizia?”, e constata que não irá se acostumar ao fato de ter envelhecido (“Eu não vou me adaptar.”).

Na música, ainda é possível observar a citação do hipotexto no trecho: “Eu não tenho mais a cara que eu tinha,/ no espelho essa cara não é minha./ Mas é que quando eu me toquei, achei tão estranho,/ a minha barba estava desse tamanho”, em que se recupera trechos de “Retrato”, confirmando seu sentido: “Eu não tinha este rosto de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios,/ nem o lábio amargo.”, “- Em que espelho ficou perdida/ a minha face?”.

A passagem do tempo também é apresentada numa relação intertextual por meio da citação: “Os anos se passaram enquanto eu dormia” recupera o sentido de “Eu não dei por esta mudança,/ tão simples, tão certa, tão fácil.”

A própria alusão ao texto de Cecília aparece na canção pela reprodução da estrutura sintática “Eu não + verbo+objeto”, porém enquanto no hipotexto, o verbo é colocado no passado: “Eu não tinha este rosto de hoje”; “Eu não tinha estas mãos sem força”; “Eu não tinha este coração”, na canção, ele aparece no presente: “Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia”; “Eu não encho mais a casa de alegria”, “Eu não tenho mais a cara que eu tinha”.

Bakhtin afirma que dois juízos idênticos são, em essência, o mesmo juízo, porém ditos por vozes diferentes, assim afirma:
“É verdade que aqui podemos falar de relação lógica de identidade entre dois juízos. Mas se esse juízo puder expressar-se em duas enunciações de dois diferentes sujeitos, entre esses enunciados surgirão relações dialógicas.” (BAKHTIN, 2008: 159)
Lendo “Retrato” e ouvindo “Não vou me adaptar”, dá pra perceber que há a relação dialógica sobre a qual escreve Bakhtin, uma vez que dois eu-líricos diferentes abordam os mesmos temas – a velhice, o envelhecimento, porém de forma diferente. Assim, recuperando o conceito de Bakhtin de “refração do ser no signo ideológico”, é possível afirmar que o poema e a canção recuperam vozes do contexto em que foram produzidos, mas refratam de forma diferente.

Cecília Meireles foi uma poetisa cujas obras foram afetadas pelo peso da ditadura, construindo assim uma literatura em que, ainda que não fale em política, se questiona e explora o “estar no mundo”: “- Em que espelho ficou perdida/ a minha face?”.

É possível ainda estabelecer uma relação com a própria biografia da autora, sua relação com o tempo e a relação vida X morte, tendo afirmado em entrevista:
“Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno que, para outros, constituem aprendizagem dolorosa e, por vezes, cheia de violência. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade.” (NICOLA, 1998: 193)
“Não vou me adaptar”, ao contrário de “Retrato”, foi composta sob o fim da ditadura no Brasil, em 1985 – na verdade, um período de transição, em que a sociedade vive certa expectativa em relação ao que virá após anos de repressão e de pensamentos contidos. Talvez seja decorrente disso a aparente situação desconfortável em que se encontra o eu que fala, passando a ideia de um sujeito sem lugar no mundo, um eu, que assim como Cecília, questiona seu “estar no mundo”.

Por meio da análise, observamos ainda que as vozes presentes nos textos dialogam por meio de diferentes pontos de vista, numa relação polêmica. Enquanto, em “Retrato”, preocupa-se apenas em constatar e relatar as mudanças decorrentes da passagem do tempo, o eu-lírico da canção “Não vou me adaptar”, não para na constatação nem no relato das alterações, mas questiona: “Será que eu falei o que ninguém ouvia?/ Será que eu escutei o que ninguém dizia”, além de afirmar que não irá se adaptar como já anuncia o título da música.

Todo texto constrói um modo de presença de um sujeito no mundo. Aqui, são sujeitos fruto da instabilidade e da incerteza decorrente das alterações sofridas com a passagem dos anos. Revela-se, portanto, um sujeito cindido ou, como diz Bakhtin, um “sujeito no limiar”, que não se reconhece diante do espelho, que sofre as coerções sociais e vive no limite entre o ser e o parecer: “- Em que espelho ficou perdida a minha face?” e “No espelho essa cara não é minha.”


* Texto “meio” adaptado de trabalho para matéria cursada no mestrado, portanto, dúvidas é só perguntar que eu tento responder (mas pra que escrever isso, ninguém vai ler! rs…).

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Dia do Índio

Como diz a Baby Consuelo, "Todo dia era dia de índio, mas agora ele só tem o dia 19 de abril". Eu diria que nem o 19 de abril eles têm mais.



Na região Sul do Mato Grosso do Sul, fronteira com Paraguai, o povo indígena com a maior população no Brasil trava, quase silenciosamente, uma luta desigual pela reconquista de seu território.

Expulsos pelo contínuo processo de colonização, mais de 40 mil Guarani Kaiowá vivem hoje em menos de 1% de seu território original. Sobre suas terras encontram-se milhares de hectares de cana-de-açúcar plantados por multinacionais que, juntamente com governantes, apresentam o etanol para o mundo como o combustível “limpo” e ecologicamente correto.

Sem terra e sem floresta, os Guarani Kaiowá convivem há anos com uma epidemia de desnutrição que atinge suas crianças. Sem alternativas de subsistência, adultos e adolescentes são explorados nos canaviais em exaustivas jornadas de trabalho. Na linha de produção do combustível limpo são constantes as autuações feitas pelo Ministério Público do Trabalho que encontram nas usinas trabalho infantil e trabalho escravo.

Em meio ao delírio da febre do ouro verde (como é chamada a cana-de-açúcar), as lideranças indígenas que enfrentam o poder que se impõe muitas vezes encontram como destino a morte encomendada por fazendeiros.*

À Sombra de um Delírio Verde
Tempo: 29 min
Países: Argentina, Bélgica e Brasil
Narração: Fabiana Cozza
Direção: An Baccaert, Cristiano Navarro, Nicola Mu
thedarksideofgreen-themovie.com


*O texto não foi escrito por mim; é o release do documentário que está no Vimeo. 

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Há coisas que sem explicação ficam menos complicadas

Fui almoçar num desses restaurantes da Vila Madalena em que macarrão com molho de carne vira rigatoni com ragu de carne e ervas finas. Todos os dias, o restaurante oferece uma opção de prato mais enconta do que os do cardápio chamada, óbvio, "prato do dia". Há também a opção do menu executivo, que inclui salada e sobremesa, além do prato do dia.

Ao chegar ao restaurante, descobri que o prato do dia era o tal de rigatoni com ragu de carne e ervas finas e, enquanto eu pensava se pediria o tal prato do dia - não estava com vontade de comer carne - ou se pediria alguma outra coisa gostosa do cardápio, sentaram ao meu lado cinco pessoas.

Fiz o meu pedido, sem explicação: "Vou querer o rigatoni, mas sem o ragu, só o macarrãozinho mesmo e uma coca".

Na mesa ao lado, todos discutiam se pediriam o prato do dia ou algum outro, até que um dos rapazes vira para o garçom e pergunta: "Eu sou vegetariano, não como carne. E o prato do dia vem carne. Há uma opção de prato do dia para vegetarianos?". O garçom respondeu que não, mas que no cardápio havia várias opções que poderiam ser consideradas vegetarianas, como o risoto de abobrinha, a salada XPTO, o macarrão blá, blá, blá, etc.

O rapaz-vegetariano, grosseiramente, disse: "Você não está entendendo. Eu quero o menu do dia, mas não quero carne no meu prato. Dá pra fazer sem o molho?" Ao que o garçom, educadamente, respondeu: "Não, falei com o chef, o prato é fixo e, se tirarmos o ragu,o massa vai ficar sem graça."

De repente, chega o meu prato, sem o ragu e delicioso. Depois, dizem que mulher é que complica.

Moral da história: Seja educado e não explique muito as coisas. É preciso ter um pouco de mistério na vida.

Sobre ser eclética

Sou eclética. Posto uma música evangélica e, em seguida, um texto falando sobre Baden e o Candomblé.

terça-feira, 17 de abril de 2012

A música e o candomblé

Em 1966, junto com Vinicius de Moraes e dividindo os vocais com o Quarteto em Cy, Baden Powell gravou o álbum 'Os Afro-Sambas'.

Coletânea de canções de candomblé, capoeira ou inspiradas em temas afro-brasileiros, o álbum tem a clássica 'Canto de Ossanha', que contou com a participação de Betty Faria no coro.

Dizem que, como canções de candomblé não podem ser interpretadas à toa, Baden precisou pedir autorização aos pais de santo para poder gravar um álbum com tais músicas.

Dizem também que Vinicius de Moraes frequentava os terreiros de candomblé e, ao contrário dos outros participantes dos rituais e das cerimônias religiosas que sentavam no chão, sentava-se em um banquinho por incorporar entidades superiores (ou será porque ele era Vinicius de Moraes, hein?!).

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Rivotrill: remédio pra alma

Há algum tempo ando tomando doses cavalares de música instrumental. E tenho descoberto muita coisa boa sendo produzida no Brasil e fora daqui.

Há algum tempo, em 2009, na verdade, fui ao Centro Cultural Rio Verde (CCRV), na Vila Madalena, assisir a um pocket-show com Vitor Araujo e a Rivotrill, tocando parte do repertório do então novo show deles em formato acústico.

(Para quem não conhece o CCRV, vale a pena conhecer, seja em dia de show, ou apenas para dar uma volta pelo espaço que é bem bonito.)

Por ter chegado cedo, acompanhei todo o ensaio dos meninos do lado de fora e vi que, realmente, eles sabem o que estão fazendo.

O show completo aconteceu no Auditório do Ibirapuera, no final de semana seguinte, e, apesar de pouco público, teve na plateia - além de mim e de outros desconhecidos - o jornalista Boris Casoy (isso é só pra dar uma autoridade pro discurso – quer dizer, o show é bom, tão bom que até Boris Casoy esteve lá e comprou dois CDs e dois DVDs ao final... rs...).

Vitor Araújo é o menino-prodígio da música instrumental brasileira. Com apenas 11 anos de idade e um ano de estudos musicais, o recifense chamou a atenção por sua habilidade ao tocar piano, executando Invenção a duas vozes, número 2, de Bach, e sendo indicado para representar Pernambuco em um concurso em São Paulo. Na ocasião, conquistou menção honrosa em sua categoria.

A Rivotrill é uma banda instrumental, que como Araújo, vem de Pernambuco. O grupo, formado por Júnior Crato (flauta transversal, sax), Rafa Duarte (contrabaixo) e Lucas dos Prazeres (percussão), foi eleito como banda revelação no RecBeat em 2007 e, desde então, vem se apresentando com muita qualidade e muito bom humor.

A união desses jovens que parecem ser tímidos, todos na linha dos 20 e poucos anos, resultou num show que reuniu o contemporâneo, o erudito e o popular. O espetáculo, além de releituras de canções como Blue Rondo a La Turk, de Dave Brubeck, e Toc, de Tom Zé, trouxe canções – que mais parecem histórias, contos com começo, meio e fim – de autoria dos meninos, como Karaí, Chuva verde e Última sessão e contou com a participação do violonista Vinícius Sarmento, que no bis, no Ibirapuera, mostrou todo seu talento ao fazer um solo maravilhoso.

Fora isso, destaque para a embalagem do DVD – uma caixinha de madeira, aparentemente feita à mão pelo artista Fernando Duarte, responsável também pelo cenário do show.

Como disse Vitor no show: “É joinha e é de Recife!”

Então, ouve aí...

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Como eu fiz amigos bebendo leite


É muito comum encontrar gente dizendo "Nunca fiz amigos bebendo leite". Já teve (ainda deve ter, na verdade) até comunidade no Orkut com o nome "Nunca fiz amigos bebendo leite".  Pois é, contrariando isso, eu já fiz amigos bebendo leite.

Eu devia ter uns sete anos e estava na segunda série quando conheci a Juliana. Logo de cara não fui com a cara dela, o que não poderia ser diferente já que, além de ser mais velha do que eu, era do tipo bagunceira, que nenhuma professora queria ter em sua sala de aula...

Morávamos muito perto e íamos e voltávamos de perua juntas. Éramos as primeiras a serem pegas e as últimas a serem entregues, o que facilitou para que começássemos a conversar, mas isso só aconteceu na terceira série. O fato de sermos as últimas a serem entregues - o que fazia com que, eventualmente, chegássemos em casa muito, muito tarde - às vezes, a mãe dela ia buscá-la e me dava uma carona e, às vezes, minha tia ia me buscar, retibuindo a carona.

Não sei como, mas numa dessas caronas, Juliana foi parar na minha casa e o combinado foi que ela dormiria lá e, no dia seguinte depois de almoçarmos, meu avô nos levaria para a escola. Até aí tudo bem, a não ser pelo fato de eu, aos oito anos de idade, ainda tomar mamadeira. Como eu faria para manter meu segredo? E se ela por acaso contasse às outras crianças da sala que eu tomava mamadeira?

Meio contrariada, o jeito foi aceitar a presença daquela menina que não era muito minha amiga na minha casa por uma noite e torcer pra que ela não fosse tão ruim quanto parecia (e quanto a professora dizia).

Chegando a minha casa, depois de termos feito a lição, tomamos banho e começamos a nos preparar para dormir.

Como boa anfitriã, cedi minha cama para ela e deitei num colchão no chão que minha mãe tinha preparado direitinho para mim. Minha mãe, sempre cuidadosa, veio oferecer a nós duas um leitinho antes de dormir. Como eu nunca recusava, aceitei na hora. E qual não foi minha surpresa ao ouvir minha mãe dizer para a Juliana: "O da Poti, eu vou fazer e colocar na mamadeira. Você prefere o seu na mamadeira ou no copo?". Mais surpreendente ainda foi a resposta: "Na mamadeira, tia. Eu também tomo ainda."

Ao ouvir isso, as três se olharam e deram risada... o que eu tentava esconder a muito custo, finalmente podia ser contado e feito às claras.

Graças à mamadeira e à salada de acelga (era a salada preferida da Juliana) da minha vó, ficamos amigas de verdade. Companheiras em passeios, brincadeiras,bagunças na escola, bagunças em casa... E até hoje, apesar de não nos vermos há algum tempo, mantemos contato de alguma forma, ainda que seja virtual, como ela diz "longe dos olhos, mas perto do coração".